POEMA

A LONGA ESPERA


Até onde chegará a nossa
resistência?
Até onde
suportaremos nós,
homens de carne e osso,
a tortura inumana?
Até onde, pacientes,
metódicos,
secretos,
seremos capazes de levar
as nossas palavras
firmes e consoladoras?
Até onde ecoarão elas,
e em que ouvidos?
Até onde teremos de mascarar-nos,
de mentir,
de fingir?

Revolução,
porque tardas?
Já escarva o chão,
pronto a investir,
o gigantesco toiro,
de baba espessa,
olhos chispantes
e frementes músculos.
Já desabrocham cravos
no silêncio contido.
Já as ocultas labaredas
se preparam para desfraldar-se,
resgatadoras,
ao vento solto.
Já as multidões,
com a sua ira,
quebram em estilhaços
o lavado cristal do dia atento.
Revolução,
porque tardas?

Desdobra, cotovia amável,
como um harmónio,
a tua alacridade,
sob o frio dos escombros.
Semeia, sol,
a luz e o calor fertilizadores
pelos campos lavrados.
Dai as mãos e anunciai,
trabalhadors de todo o mundo,
o grande recomeço.
Soldados,
quebrai com ímpeto
as vossas armas arrependidas
e pisai-as.
E tu, menino, proclama,
com a tua voz de alvorada,
para além dos teus desejos,
os teus desejos realizados.


Armindo Rodrigues

BRANQUEAMENTO DO FASCISMO (2)

Uma última anotação sobre o livro de Irene Flunser Pimentel (IFP), «A História da PIDE».
Na Segunda Parte da obra - «A PIDE/DGS e os seus principais adversários» - nos capítulos V e VI, a autora aborda «as relações entre a polícia política e o Partido Comunista Português, o principal adversário político do regime até ao final da década de 60».

IFP recorre a curiosos métodos e caminhos de investigação e de análise.
Em matéria de fontes, ela vai beber essencialmente, aos historiadores de serviço (Pacheco Pereira, Fernando Rosas, etc); ao omnipresente Mário Soares; e, naturalmente, à própria PIDE e ao inevitável inspector Fernando Gouveia - e, embora citando dois ou três livros de militantes comunistas, é visível que IFP não achou necessário (ela bem saberá porquê...) consultar o muito que sobre essa matéria foi escrito pelo PCP e, especialmente, por Álvaro Cunhal...
Depois, IFP apresenta-nos a resistência antifascista do PCP como um combate entre pides e comunistas em que os primeiros tentam prender os segundos e os segundos tentam não ser presos pelos primeiros - tudo isto muito à margem das lutas organizadas e dirigidas pelo PCP, lutas que, para IFP, parece não terem nada a ver com a resistência...
Assim sendo, nesse combate PIDE/PCP a polícia fascista sai sempre «vitoriosa»: porque prende comunistas e os comunistas não prendem pides...

E é com particular deleite que IFP vai descrevendo essas «derrotas» e «vitórias» - entendendo-se que cada comunista preso é uma «derrota» do PCP e uma «vitória» da PIDE...
Vejamos, a título de exemplo, alguns dos títulos dos vários sub-capítulos: «A hecatombe de 1945: os "desastres" do Norte e do Sul»; «"Desastres" em Ovar, no Alentejo, Ribatejo e em Coimbra»; «Annus horribilis para o PCP. A direcção é atingida (1949)»; «Prossegue a "colheita" da PIDE»; «1959, o ano de todas as prisões» - e, mesmo quando as coisas estão mal para os fascistas, IFP tem o cuidado de dividir os males, assim: «1961, annus horribilis para o regime mas também para o PCP»...

O prazer de IFP em realçar as «derrotas» do PCP perpassa por todo o livro em todos os aspectos: até quando refere o número de militantes comunistas, a autora fá-lo sempre pela negativa, género: o PCP que em tal data tinha x militantes, tem agora apenas y...

Um último exemplo: a dada altura, IFP fala dos «anos 50»: «Os anos 50 foram duros para o PCP, que se fechou sectariamente e endureceu a sua disciplina» - e, em abono da sua tese, cita... Pacheco Pereira e Fernando Rosas, pois claro.
Depois, pega na palavra desavergonhada de Mário Soares: «O PCP transformou-se numa organização fechada, numa quase seita esotérica, donde os melhores militantes fugiam até por razões de simples bom senso»...
Finalmente, conclui o que... antes mesmo de escrever o livro, já tinha concluído: «Os primeiros anos da década de 50 foram os de todas as purgas e, mesmo, como se verá, de algumas execuções no seio do PCP».
Ora, como se verá, IFP repete as estórias bolsadas por Pacheco Pereira sobre a matéria - estórias que não passam de repetições das versões difundidas pela PIDE.

Assim vai a operação de branqueamento do fascismo.

POEMA

CALA-TE, FILHO, NÃO PENSES NISSO


Mãe, há pouco vi
um barco de prata
lá longe no mar,
eu cá quero, mãe,
nesse barco andar...

Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
não olhes prás ondas,
segue o teu caminho...

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
anda naquele barco,
ninguém lhe diz não.
Porque não posso eu?

Ai, filho, não sei...

Mãe, há pouco vi
um cavalo a trotar
naquele prado além,
eu cá quero, mãe,
nesse cavalo andar...

Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
e é tão perigoso,
segue o teu caminho...

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
tem um cavalo preto
com rédeas douradas.
Porque não o tenho eu?

Ai, filho, não sei...

Mãe, alguém me disse
que ao Bom Deus o peça,
que Ele mo há-de dar,
cavalo prá terra
e barco pró mar...

Cala-te, filho, não penses nisso,
és muito pequeno,
Deus está ocupado,
segue o teu caminho...

Mãe, o filho do patrão,
pequeno como eu,
ouve-o sempre Deus,
nunca lhe diz não.
Que mal lhe fiz eu?

Ai, filho, não sei!


Guillermina Motta

BRANQUEAMENTO DO FASCISMO (1)

Há cerca de um ano, comentei aqui uma entrevista de Irene Flunser Pimentel (IFP), autora de um livro então acabado de lançar: «A História da PIDE».
Na altura, despertou-me a atenção - e especialmente indignou-me - o facto de, na referida entrevista, IFP ter afirmado que «a PIDE prendeu pouco e matou pouco», afirmação por mim lida como inserindo-se na operação em curso, levada a cabo por um conjunto de historiadores de serviço com o objectivo maior de proceder ao branqueamento do fascismo.

De então para cá, IFP deu entrevistas a vários jornais, rádios e televisões; o livro e a autora foram louvados e incensados; a obra saíu no Círculo dos Leitores - em cuja revista, Mário Soares aconselhava vivamente a sua leitura... enfim, «A História da PIDE» foi notícia grande, tendo-lhe sido, mesmo, atribuído o Prémio Fernando Pessoa.
Comprei o livro na altura e li-o, agora, aproveitando um período de férias.

Independentemente de reconhecer alguns aspectos positivos neste trabalho de IFP - designadamente a sua Primeira Parte, na qual é abordado o processo de criação da PIDE nas suas várias vertentes - a leitura de «A História da PIDE» confirmou-me a conclusão que tirei aquando da entrevista acima citada: trata-se de mais um instrumento da tal operação de branqueamento do fascismo.
Desde logo porque a autora faz sua a tese central dessa operação (por isso muito em voga) de que em Portugal não existiu fascismo.
E nem sequer se dá ao trabalho de o demonstrar: parte desse princípio, aceita-o como se fosse um dado incontestado e incontestável, e já está...
Daí que nas 575 páginas do livro, sempre que fala do regime fascista ela recorra, regra geral, à formulação «Estado Novo», criada como se sabe por Salazar.
E tantos e tão grandes são os cuidados de IFP em afastar o «fascismo» do «regime» que mesmo a palavra «fascismo» - palavra obviamente proibida - só é utilizada quando a autora fala da Itália de Mussolini e nunca em relação ao Portugal de Salazar.

Assim sendo, é natural que IFP não tenha aludido sequer ao facto de haver gente com obra escrita que, não apenas rejeita a tese em voga, como demonstra, inequivocamente, que no nosso País existiu, de facto, um regime fascista com todas as características essenciais dos regimes fascistas.

Outra tese em voga que IFP perfilha é a que concluiu que o PCP foi «o principal adversário político do regime», mas apenas «até ao final da década de 60», altura a partir da qual, diz a tese, foi substituído pelos «grupos de extrema-essquerda e de luta armada».
Tendo em conta que IFP repete exaustivamente esta tese ao longo do livro, sou levado a pensar tratar-se, neste caso, de uma conclusão essencial para os tais historiadores de serviço
que são, ao fim e ao cabo, quem diz como é...
IFP repete e repete a dita tese sem se dar ao trabalho de a demonstrar com factos, e ficando-se pela demonstração através... de citações, entre elas as do ex-inspector da PIDE, Fernando Gouveia - que é, aliás, ao longo do livro fonte na qual a autora amiúde vai saciar a sua sede.

Também neste caso, IFP não faz a mínima alusão a teses que contrariam aquela que fielmente adoptou.
Muito menos se preocupa em olhar para a realidade, para os factos, para o que aconteceu em Portugal nesse início dos anos 70.
E bastar-lhe-ia dar uma olhadela ao que se passou nesse período em que na resistência ao fascismo, segundo diz, o PCP foi substituído pelos «grupos de extrema-esquerda e de luta armada»...
Se o fizesse, ficaria a saber que no decorrer de todos esses anos de 70, 71, 72, 73 e início de 74,
1 - se desenvolveram vastos e fortes movimentos de greves e lutas dos trabalhadores, envolvendo praticamente todas as áreas de actividade;
2 - se realizaram grandes manifestações de massas por todo o País;
3 - no ano de 1973, se realizou o importante 3º Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro;
4 - nesse mesmo ano, o PCP promoveu uma ampla campanha política de massas, traduzida em centenas de comícios, sessões e outras acções de massas nas quais centenas de milhares de portugueses desafiaram publicamente o regime fascista;
5 - a esta campanha política de massas sucedeu-se, de imediato, uma vaga de greves nas quais participaram dezenas de milhares de trabalhadores - greves ocorridas nos primeiros meses de 1974, até ao dia 24 de Abril... já que as greves que estavam marcadas para dia 25 (caso da Mague, por exemplo) assumiram expressão diferente...

Se olhasse para tudo isto e procurasse origens, IFP ficaria a saber, naturalmente, que nenhuma destas lutas e acções teria ocorrido sem... o PCP - e teria constatado que também em matéria de «luta armada» a ARA foi a organização que mais e com maior eficácia agiu.
Ou seja: se IFP olhasse um pouco mais para os factos e um pouco menos para as miragens; se reflectisse um pouco mais sobre esses factos e recorresse um pouco menos às conclusões apriorísticas - as suas conclusões seriam, inevitavelmente, diferentes.
Assim, são um eco das conclusões das chefes...

Mas percebe-se que IFP tenha fugido de olhar para os factos e de proceder à avaliação dos mesmos: é que se o fizesse lá ia a tese oficial pró galheiro...

POEMA

AS PESSOAS SENSÍVEIS


As pessoas sensíveis não são capazes
de matar galinhas
Porém são capazes
de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
à roupa do seu corpo
aquela roupa
que depois da chuva secou sobre o corpo
porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
a roupa
que depois do suor não foi lavada
porque não tinham outra

«Ganharás o pão com o suor do teu rosto»
assim nos foi imposto
E não:
«Com o suor dos outros ganharás o pão»

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen

'La samarreta'

A versão cantada do poema "A Camisola" de Ovidi Montllor.


POEMA

A CAMISOLA


Sou filho de família muito humilde,
tão humilde que duma cortina velha
me fizeram uma camisola.
Vermelha.
E por causa dessa camisola
nunca mais pude andar pela direita.
Tive de ir sempre contra a corrente,
porque não sei o que se passa,
que todos que a enfrentam
vão sempre de cabeça ao chão.
E por causa dessa camisola
não mais pude sair à rua
nem trabalhar no meu ofício
de ferreiro.
Tive de ir para o campo à jorna,
pois assim ninguém me via.
Trabalhava com a foice.
e apesar de todos os males,
sei trabalhar com duas coisas:
com o martelo e a foice.
Quase não compreendo como a gente
quando me via pela rua
me gritava: Progressista!
Eu julgo que tudo era
causado por ignorância.
Talvez noutra circunstância
já tivesse mudado de camisola.
Mas como gosto muito dela
porque é quente e me consola,
peço-lhe que nunca se faça velha.


Ovidi Montllor

ANALISTAS PREOCUPADOS...

O Público dedica uma página ao referendo em que o povo equatoriano se vai pronunciar, hoje, sobre o projecto de Constituição.
No que respeita às perspectivas, é-nos dito que os «equatorianos inclinam-se» para aprovar o projecto - sendo sublinhado, de imediato, que «mesmo que o texto passe, há uma zona pouco clara, centrada nas ambições do Presidente socialista Rafael Correa, que preocupa alguns analistas».
Eis como uma simples frase... diz tudo: se a Constituição for aprovada pela maioria do eleitorado, a minoria lá está para o que der e vier...
E, como é hábito nestas circunstâncias, há sempre «alguns analistas» preocupados...

Como também é hábito, é a esses analistas preocupados que o Público dá a palavra.
E as preocupações dos analistas são, igualmente, as habituais.
Assim, um analista preocupa-se com o facto de, no caso de a Constituição ser aprovada, ela vir a ser «um instrumento nas mãos de um líder que reproduz, em nome de uma suposta revolução, os estilos de uma velha política populista e clientelista, recheada de autoritarismo, de demagogia e extremo personalismo».
Onde é que nós já ouvimos isto?...
E isto?: outro analista, ainda mais preocupado do que o anterior, diz que, mesmo que a maioria aprove a Constituição, se, numa certa região do país o «não» for vencedor... isso poderá «desencadear no país um motim semelhante» ao da Bolívia...

Noutra linha de análise preocupada, um professor de Direito da Universidade de não sei onde conclui, peremptório, que o texto constitucional «é vago, muito extenso, confuso e complicado»...

Em síntese, todos eles estão preocupados e com «medo de que a Constituição, primeira pedra do "socialismo do século XXI" defendido por Correa, leve o país num caminho semelhante ao da Venezuela e da Bolívia», ou, mais concreta e precisamente, num «caminho que ameace a propriedade privada»...
Isto porque, segundo o projecto de Constituição, «a economia de mercado será substituída por um "sistema enocómico social e solidário, centrado nas pessoas», e a «propriedade privada passa a coexistir com a pública, a estatal, a associativa, a cooperativa e a mista».
Enfim, tudo medidas que, como não podia deixar de ser, preocupam seriamente os analistas...

A mostrar, de forma ainda mais clara, o sentido dessas preocupações registe-se, por exemplo, este dado curioso:
os referidos analistas não estão preocupados com o facto de metade dos cerca de 14 milhões de equatorianos serem pobres e muito pobres - mas estão preocupadíssimos com a decisão já tomada pelo PresidenteRafael Correa de «destinar os lucros do petróleo nacional à classes mais desfavorecidas».

Preparemo-nos, então, para a campanha que aí vem. E para ver as preocupações destes analistas traduzidas nas habituais acções contra-revolucionárias.

POEMA

PARA O MEU TIO


Para o meu tio, que era anarquista,
e que não me deixaram conhecer
porque morreu doente no exílio.

Para o meu pai, que não era de nenhum partido,
nem percebia muito disso,
mas que lutou como voluntário na guerra,
apesar de ver que a perdíamos.

Para o pai do meu cunhado, que figura
na grande lista dos desaparecidos
pelos caminhos que levavam a França.

Para todos os que morreram
com uma bala na frente
nas trincheiras.

Para todos os que morreram na areia
dos campos de concentração franceses.

Para todos os que morreram de fome
nos campos de extermínio alemães.

Para todos os que nunca figuraram
nas listas dos martirizados.

Para todos os que lutaram
para que nós não conhecêssemos
o mundo onde tivemos de nascer.

Para todos vós,
mortos e vivos,
homens e mulheres,
cobardes e valentes.

Para todos vós,
eu, filho da derrota,
envio
toda a minha gratidão,
admiração e respeito.


Enric Larreuela

27 DE SETEMBRO DE 1979

O primeiro governo constitucional, chefiado por Mário Soares, deu início, em 1976, a uma brutal ofensiva contra as conquistas da Revolução, tendo como objectivo destruir tudo o que de mais avançado e progressista tinha sido alcançado - ofensiva que foi prosseguida por todos os governos que lhe sucederam ao longo de 32 anos.

A Reforma Agrária foi o primeiro alvo dos inimigos de Abril.
Contra ela foi lançada uma operação cheia de ódio de classe que se desenvolveu através de ilegalidades, de roubos de terras e de gado, de sabotagens e de violenta repressão policial.
A resistência dos trabalhadores foi heróica.

No dia 27 de Setembro de 1979, uma força da GNR - comandada pelos capitães Martins e Faria e pelo sargento Maximino, todos conhecidos pelo seu ódio à Reforma Agrária - acompanhada por um grupo de agrários e por funcionários do Ministério da Agricultura, procedeu a um roubo de um rebanho de vacas na UCP Bento Gonçalves, no concelho de Montemor-o-Novo.
Os trabalhadores resistiram.
A GNR - agindo, como no tempo do fascismo, a mando dos agrários... - disparou, ferindo vários trabalhadores e assassinando dois:
ANTÓNIO CASQUINHA, de 17 anos e JOSÉ CARAVELA, de 54 anos - ambos militantes comunistas.

O Governo - na altura chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo - mandou instaurar um inquérito.
A principal conclusão desse inquérito também fazia lembrar as conclusões tiradas pelos ministérios do interior no tempo do fascismo quando as forças repressivas matavam:
a GNR disparou, sim, mas para o ar...

O Cravo de Abril assinala, hoje, o assassinato dos dois camaradas com um poema escrito no dia do seu funeral - que se realizou para o cemitério de Escoural e ao qual acorreram dezenas de milhares de pessoas.


(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo pela Guarda)

1
Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

2
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

POEMA

ELEIÇÃO


No grande laboratório
onde o amor mais puro é transformado em excremento
e um homem em tamanho natural
é reduzido em poucos minutos a escombros

onde os crocodilos são rapidamente promovidos
e os buracos de fechadura são pistolas automáticas

onde se esmaga o cordão umbilical dos sonhos
e se transformam os venenos em fogos de artifício

onde os caixeiros viajantes se exercitam
para vender provetas saturadas de morte

é hoje inaugurada uma nova caveira
e muitos depositam nela imensa esperança.


Egito Gonçalves

A PRIMEIRA E A ÚLTIMA PALAVRA

Um dia, os EUA disseram: «A Bielorrússia é a última ditadura da Europa».
No dia seguinte e seguintes, os órgãos da comunicação social dominante passaram a dizer que «a Bielorrússia é a última ditadura da Europa».
E pronto: está dito e feito: «A Bielorrússia é a última ditadura da Europa».

Quem ouse contestar essa conclusão, ou não tem a mínima hipótese de ser ouvido, ou é considerado um fóssil preso a ideias velhas e antidemocráticas.
E em caso de insistência na contestação, o fóssil pode, até, passar a integrar a famosa e extensa «lista de terroristas», a partir da qual os EUA prendem cidadãos dos mais diversos países que, depois, transportam em voos secretos, para as prisões que têm espalhadas nos mais diversos países - onde são submetidos... não a torturas, porque no país da democracia e da liberdade a tortura não é permitida, mas a democráticos interrogatórios cujo tempo de duração é determinado pelo tempo que cada preso demora a confessar o que os interrogadores querem que ele confesse.

Amanhã, há eleições na Bielorrússia - país que os prestimosos Público e Diário de Notícias de hoje nos garantem ser «a última ditadura da Europa»...
Para fiscalizar a democraticidade (ou não...) do acto eleitoral deslocaram-se à Bielorrússia centenas de «analistas e jornalistas» idos de vários países do mundo - para além, é claro, dos cerca de «quinhentos observadores da Organização de Segurança e Cooperação da Europa».
Curiosamente, todos estes fiscais e observadores são oriundos de países onde os actos eleitorais nunca são fiscalizados por ninguém - porque alguém decidiu que nesses países as eleições são exemplos perfeitos de democracia aplicada e, como tal, insusceptíveis de levantar qualquer dúvida...

Por exemplo: não passa pela cabeça seja de quem for - era o que faltava! - enviar «fiscais» e «obervadores» aos EUA, onde decorre neste momento um processo eleitoral que culminará, dentro de pouco mais de um mês, com a eleição do futuro Presidente daquele país.
É claro que, ao longo do tempo, foram vários os presidentes dos EUA que chegaram ao cargo através de fraudes monumentais - nem é preciso recuar nada nesse tempo: o actual Bush foi «eleito» graças a uma contagem e recontagem de votos que durou o tempo e o accionamento dos mecanismos necessários para... ele ser «democraticamente eleito»...
Mas estamos a falar dos EUA, país que não apenas está acima de qualquer suspeita, mas que é quem diz a primeira e a última palavra sobre quem é e quem não é democrático, e sobre o que é ou não é uma ditadura...
E, não nos esqueçamos que os EUA disseram a primeira e a última palavra sobre si próprios e sobre a Bielorrússia:
«Os EUA são o país da democracia e da liberdade»;
«A Bielorrússia é a última ditadura da Europa».

Ora, se todos os jornais, rádios e televisões do mundo dizem que assim é... quem há aí que se atreva a duvidar de uma verdade tão amplamente confirmada?

POEMA

A MÁSCARA DO MAL


Dependurada na parede tenho
uma escultura de madeira japonesa:
a máscara dum demónio pintada a laca dourada.
Olhando para ela, vejo
as veias inchadas da testa, indicando
quanto esforço custa ser mau.

Brecht

O TEMPO É DE GUERRA

Diz a notícia que quando do encontro Bush/Ehud Olmert, em Jerusalém, em Maio deste ano, o primeiro-ministro israelita «pediu autorização» a Bush para proceder a «uma operação de bombardeamento do Irão».
Este «pedido de autorização» é por demais elucidativo quanto ao papel de dono e polícia do mundo desempenhado pelos EUA e quanto à aceitação desse papel por parte dos seus incondicionais apoiantes e cúmplices.
O caso confirma, ainda, que todos os brutais crimes até hoje praticados pelos governos fascistas de Israel foram previamente «autorizados» pelos governos dos EUA.

Segundo a mesma notícia, desta vez Bush respondeu negativamente ao pedido de Israel.
Por duas razões:
1 - o receio de uma série de ataques de represália por parte do Irão - que poderiam atingir militares norte-americanos no Iraque e no Afeganistão; e
2 - a consideração de que uma só operação de bombardeamento não chega: são necessários, segundo Bush, «vários dias de ataques», o que, no quadro actual, poderia comportar o risco de uma guerra total - ou seja: neste caso, «os benefícios não compensariam os custos», por isso a autorização foi negada.

Anote-se a forma fria, calculista, desapiedada, totalmente desprovida de quaisquer sentimentos humanos, com que o problema é abordado por todos os seus intervenientes - aí incluídos os média dominantes que contam tudo isto sem sequer o esboço de um registo crítico, antes pelo contrário, como coisa natural e boa.

Entretanto, ontem, o historiador isrelita Ze'ev Sternhell - um dos mais prestigiados intelectuais do país, membro do Movimento Peace Now e que tem vindo a criticar a colonização dos territórios ocupados - foi hospitalizado por efeito da explosão de uma bomba na sua residência.
Os bombistas espalharam panfletos nos quais ofereciam um prémio de 220 mil euros a quem «assassinar membros do Movimento Peace Now».

Ou, como, há mais de dois séculos, dizia o Voltaire: «É perigoso estar certo quando o governo está errado»...

POEMA

TUDO O QUE EU QUERIA


Queria poder sentar-me com todos à mesa
e conversar tranquilamente, falar do tempo,
dos amigos, da cidade, tomar um copo
e um pires de caracóis (esta rodada é minha)
e assim, sem gritar, irmo-nos entendendo,
descobrirmos, todos juntos, por que sofremos
as moléstias do tempo em partes iguais,
e não achamos abrigo quando chove, que é quase sempre.

Queria, depois de jantar (claro que um bom jantar)
acender um bom charuto, abrir um livro
de versos de paisagem ou do mar do retorno
(cor de vinho dizem-me, e eu acho que tanto faz)
e lavar o meu olhar com o vaivém
da luz, da noite e do mar.

Queria, sem olhar para o norte
encontrar uma esperança sobre esta terra que é a minha
e a de todos; ver um amanhã melhor
conseguível no meu trabalho e no dos outros;
encontrar o amor; um pouco de paz se ainda há
e uma moral que não nos leve à morte, mas à vida.

Já terão adivinhado do que se trata,
o que lhes queria dizer
é que me lixa ter de escrever versos.


Jaume Pomar

O PATRÃO E O LACAIO

Tudo confirma a necessidade de o dia 1 de Outubro ser uma grande jornada de luta dos trabalhadores.
Veja-se a azáfama em que anda o ministro dito do Trabalho, Vieira da Silva, enaltecendo as supremas bondades do seu Código, que apresenta como solução para todos os problemas do País - coisa que só os do bota-abaixo é que não querem ver...

Agora, o ministro veio anunciar as medidas de «reforço de meios técnicos e humanos» com que foi dotada a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) que é quem irá «inspeccionar a aplicação» do Código.
Mas desde já avisou que não se espere desta Autoridade uma acção semelhante à da ASAE, já que à ACT compete fiscalizar os patrões - e estes, obviamente, não podem ser tratados como a ASAE trata os seus investigados que são, como se sabe, feirantes, pequenos comerciantes, ciganos, etc.
Neste caso, trata-se de fiscalizar patrões, coisa que exige especiais cuidados, atenções, delicadezas, curvaturas, pedidos de autorização e garantias de que não fiscalizam nada.
Percebe-se que assim seja: aliás, se assim não fosse, é bem de ver que os patrões não permitiriam a existência da ACT...

Extasiado perante as excelências do seu Código, o ministro previu que ele irá «produzir resultados positivos na economia e na sociedade portuguesa».
A previsão foi, de imediato, confirmada pelo patrão da CIP, Francisco Van Zeller - que é, também, patrão do ministro.
Disse ele que este Código do Trabalho vai «legalizar a precariedade» - o que tem a enormíssima vantagem de fazer da precariedade, tendencialmente, o principal, se não único, vínculo laboral dos trabalhadores portugueses.
Outra excelência do Código valorizada pelo patrão é a que respeita ao «conceito de horas extraordinárias», que deixam de existir porque «trabalhar mais duas horas por dia passa a ser regular»...

Como se vê, é total a sintonia entre o patrão e o ministro - ou, dizendo com mais rigor, entre o patrão e o lacaio.

E, como lá em cima se disse: tudo confirma a necessidade de o dia 1 de outubro ser uma grande jornada de luta dos trabalhadores.

DIA NACIONAL DE LUTA

POEMA

BALADA PARA UM CONSTRUTOR CIVIL


É este o monumento erguido em tua honra:
um bloco de cimento de cento e vinte apartamentos
Ele é o teu orgulho por ele andaste
de um lado para o outro constantemente discutiste
o preço do ferro e da mão-de-obra deste gratificações
a funcionários municipais assinaste papéis papéis papéis
acordaste em cada manhã impaciente por ver mais um andar
sobre a tua cabeça que fez de noite contas e mais contas
jantaste repetidamente com o engenheiro e os arquitectos
a quem generosamente pagaste os whiskies e o marisco
mostraste algumas vezes à esposa e às amantes o edifício em construção
e passeaste-as no Mercedes dando largas à tua alma de betão
tiveste problemas com o pessoal ameaçaste
os homens que fizeram greve e untaste as mãos
aos que não aderiram e continuaram o trabalho
seguiste passo a passo a construção com a baba na boca
é meu! é meu! disseste para ti mesmo olhando para o alto
tiveste longas conversas com o gerente do Banco que te sorriu e financiou
e a quem prometeste não esquecer no acto da escritura
passaste entre os operários que erguiam as paredes e perguntaste
olá, como vai isso? mas referias-te sempre ao trabalho deles
mandaste pôr uma coroa de flores na campa do servente que
desabou como um pássaro tonto de um andaime do décimo-terceiro andar e
só não acompanhaste o funeral porque a tua filha fez anos nesse dia
fizeste servir na última tarde um almoço para todos
esquecendo alguns ressentimentos e onde havia vinho à discrição
agradeceste pessoalmente a cada um e botaste discurso
mostrando-lhes claramente que és um homem preocupado
que sabe muito bem tudo o que faz

Porém agora que está pronto o monumento
é sobre ti que me interrogo:
Sabes tu quem foram Engels Stravinsky Cesário?
e Van Gogh? E Byron? E Rodin?
Saberás tu que assassinaram Pasolini?
Saberás que Neruda construiu edifícios com pedras preciosas e rubis sangrentos
e que Éluard carregou a sua arma e disparou versos contra os inimigos da França?
Saberás que Aragon amou Elsa nas trincheiras
entre ratos e cadáveres de milhares de crianças fardadas
e que tinham grandes olhos azuis?
Saberás que Camões foi expulso do Império porque ergueu o talento
mais acima que o de todos os outros? E que também Dante foi
espulso de Florença e errou como um pedreiro
à procura de trabalho para morrer feito um cão
longe das portas de ouro da cidade que hoje o reclamam?
Saberás que Fernando Pessoa também olhava para as casas
como quem olha para as árvores?
Será que tu te interessas por estas ninharias?
Oh! como eu gostaria que ao menos pudesses ter presente
o que um dos nossos poetas deixou escrito sobre
as casas as casas as casas!


Joaquim Pessoa

TROPEÇOS DA MEMÓRIA...

Num texto intitulado «Os Tropeços do Capitalismo», Baptista Bastos debruçou-se sobre a actual crise do sistema.
A dada altura - após concluir (e bem, a meu ver) que o capitalismo logrará, uma vez mais, superar a crise, Bastos resolve dar à sua conclusão um carácter definitivo, assim:
«O capitalismo sempre se regenerará».
Todavia, não querendo arrostar, sozinho, com as responsabilidades deste «sempre», acrescentou:
«Como ensinou Marx, previu Lenine e assevera George Soros».
Percebe-se que Bastos tenha sentido necessidade de arranjar apoios de peso para a sua conclusão fatalista, derrotista e falsa.
Mas há que reconhecer que se enganou na escolha, já que, como ele muito bem sabe, nem Marx ensinou, nem Lenine previu, nem Soros assevera que «o capitalismo sempre se regenerará».
Bem pelo contrário: cada um à sua maneira e no seu tempo ensinou, previu e assevera precisamente o oposto do que Bastos concluíu.
Trata-se, neste caso, de mais um daqueles tropeços da memória em que o conhecido escritor e jornalista se mostra fértil.

Mais adiante, em jeito de confirmação da sua conclusão anterior, Bastos regista a inviabilidade de construção de uma alternativa ao capitalismo. E dá como exemplo a acção dos «partidos socialistas e sociais-democratas» que, ao longo dos anos, têm estado no poder na Europa...
Acção fracassada?: é o que parece estar implícito quer na pergunta colocada por Bastos - «Para que serve esta Esquerda?», quer na resposta que ele próprio dá: «A crise fornece-nos a resposta: para nada».
Ora, aquilo a que Bastos chama «esta Esquerda»... começa por, de facto, não ser esquerda nenhuma, para além de que muito menos tem, ou teve algum dia, como objectivo da sua acção a construção de uma alternativa ao capitalismo - e ainda muito menos de ser a alternativa socialista...
Com efeito, esses partidos «socialistas e sociais-democratas» sempre tiveram como tarefa fundamental - que, aliás, têm cumprido exemplarmente - a defesa do capitalismo.
E é para isso que «esta Esquerda» tem servido e vai continuar a servir.
Fingindo o contrário? Claro.
Aliás, como temos visto, não há melhor forma de defender o capitalismo do que fazê-lo... em nome do socialismo...

É assim que esses «partidos socialistas e sociais-democratas», fazendo-se passar pelo que não são e sendo o que fingem não ser, constituem autênticos seguros de vida do capitalismo, ludibriando milhões e milhões de incautos - entre os quais, ao que parece, o jornalista e escritor Baptista Bastos...



POEMA

(De uma entrevista qualquer num jornal
inquiridor: «Mas estarão os comunistas dispostos
a aceitar a alternância no poder?»)


«Democracia é alternância»
repetiu de novo a embalar o tédio,
um senhor de sonho espesso.

Como se fosse possível! - ó glória! ó ânsia! -
construir um prédio,
mudando de vez em quando
os mesmos tijolos do avesso.


José Gomes Ferreira

TRÊS PABLOS

Há anos... piores do que outros.
Está nesse caso o de 1973.
Já aqui falámos dele a propósito do golpe fascista no Chile - e, também, do assassinato de Bento Gonçalves no Campo de Concentração do Tarrafal.

Hoje é a vez de o Cravo de Abril assinalar a passagem do 35º aniversário das mortes de três Pablos, todos figuras maiores da arte e da cultura mundiais, todos homens que puseram a sua arte e o seu génio ao serviço das mais nobres causas humanas, todos desaparecidos nesse «ano assassino de 1973»:

Pablo Picasso, em 8 de Abril.
Pablo Neruda, em 23 de Setembro (faz hoje precisamente 35 anos).
Pablo Casals, em 22 de Outubro.

Por isso, aqui fica esta

«BREVE CONSIDERAÇÃO À MARGEM DO ANO ASSASSINO DE 1973»

que Vinicius escreveu e leu num espectáculo memorável realizado em Dezembro desse ano:


Que ano mais sem critério
esse de setenta e três...
Levou para o cemitério
três Pablos de uma só vez.

Três Pablões, não três pablinhos
no tempo como no espaço
Pablos de muitos caminhos
Neruda, Casal, Picasso.

Três Pablos que se empenharam
contra o fascismo espanhol
Três Pablos que muito amaram
Três Pablos cheios de sol

Um trio de imensos Pablos
em génio e demonstração
feita de engenho, trabalho,
pincel, arco e escrita à mão.

Três publicíssimos Pablos:
Picasso, Casal, Neruda
Três Pablos de muita agenda
Três Pablos de muita ajuda.

Três líderes cuja morte
o mundo inteiro sentiu...
Ó ano triste e sem sorte:
Vá prá puta que o pariu.







POEMA

MAIS TARDE SIM


Escreverei mais tarde
simples poemas claros
e falarei das aves
sem sofisma.

Escreverei mais tarde
de navios, lagunas,
das tuas roupas soltas
manchadas de luar...

Escreverei mais tarde
saudades da infância
e de pedras e rosas
sem dúbios sentidos.

Escreverei mais tarde
de um anel muito simples
e das tardes plenas
em que o amor se inscreve.

Mas agora deixai-me
chorar sobre estas lágrimas.


Egito Gonçalves

TRAFULHICES

«O Futuro da Europa» foi o tema de um «colóquio internacional» ontem realizado por iniciativa das fundações Respública (do PS), Mário Soares (do próprio) e Friedrich Ebert (do SPD alemão).
Soares foi um dos oradores e, como era inevitável foi a estrela da noite: falou, falou, falou...
Entre outras coisas - aparentemente de esquerda mas, de facto, visando a superação da crise que assola o sistema capitalista - apontou o «Tratado de Lisboa» como caminho dos caminhos...

Soares foi, como é seu hábito, extremamente pragmático...
Disse ele que, perante o «não» dos irlandeses, os dirigentes europeus devem... fazer tudo o que for necessário para que o Tratado seja urgentemente aprovado.
Com isto, Soares queria dizer: as trafulhices já feitas foram positivas mas não chegam; por isso é preciso trafulhar mais...
Porque, declamou, os que «querem» o Tratado, não devem deixar-se travar pelos que o «não querem».
Querer ou não querer, eis a questão: há os que «querem» (os «bons») e há os que «não querem» (os «maus») - e Soares, como sempre, está do lado dos «bons».

E quem são uns e outros? Quem são os que «querem» e os que «não querem»?
Soares foi claro: os que «querem» são os governantes ao serviço do «querer» do grande capital - e estes, de tal forma e com tal força querem, que - temendo o «não» dos povos dos seus países - se decidiram pela trafulhice de proibir os referendos;
e os que «não querem» são os povos aos quais, pela trafulhice, foi roubado o direito de terem opinião - e e o povo irlandês que, vendo reconhecido esse direito, se pronunciou clara e inequivocamente pelo «não».

Há que reconhecer que estes democratas-tipo-soares são possuidores de inesgotável criatividade na expressão do seu amor à democracia...
Um dia, ouvimo-los gritar, com tremidos de voz, que «o sufrágio universal é um pilar básico da democracia».
No dia seguinte - porque o voto popular indicia ir contra os seus planos - vemo-los mandar o sufrágio universal às urtigas e substituirem-se, eles próprios, à vontade democrática dos eleitores.
Nos dois dias, vemo-los confirmando que, para eles, a democracia não passa de um utensílio que utilizam sem princípios para a perpetuação do sistema capitalista.

Aliás, como estamos recordados, foi na base desse conceito utilitário de democracia que Soares encabeçou a contra-revolução de Abril - entregando, de novo, o poder ao grande capital e depositando a independência e a soberania nacional nas garras do imperialismo norte-americano e da sua filial na Europa, que dá pelo nome de União Europeia.

Ora, mostra a História, que por muito, muito menos do que isso foi o Miguel de Vasconcelos atirado pela janela, no 1º de Dezembro de 1640...
E ao Miguel de Vasconcelos não foi permitido ter fundações, nem participar em colóquios internacionais. E muito menos ser apontado como democrata exemplar...

Ocidente Democrático!

Itália de Berlusconi:
não matou, não roubou, não espancou ninguém... mas a sua mãe foi acusada de negligência e o rapaz, dezasseis anos feitos, foi-lhe retirado... espiemos então o seu crime:
http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=106165

POEMA

POEMA DA MORTE NA ESTRADA


Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo de fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só monento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.


António Gedeão

A ESCOLHA DE MARCELO

Marcelo Rebelo de Sousa, nas suas «escolhas» escolheu o slogan da «mudança» adoptado pelo PS para as legislativas de 2009.
Tão bom é o slogan que Marcelo acha que foi pena o PSD não se ter antecipado, agarrando a ideia da «mudança»... mas, paciência, atrasou-se e agora adeus «mudança» laranja...

O raciocínio de Marcelo é um exemplo perfeito de como funciona a lógica politiqueira dominante, segundo a qual as palavras não contam pelo seu verdadeiro significado mas sim por um significado instrumentalista que lhes é imposto - e que acaba por vingar à custa da sua exaustiva e intensiva repetição, designadamente através de comentadores como Marcelo.

A palavra «mudança», atirada como promessa eleitoral (seja pelo PS, seja pelo PSD) é uma mentira, uma fraude, uma flagrante manifestação do conto do vigário.
Na verdade, nenhum desses partidos quer «mudança» nenhuma, bem pelo contrário.
Recorde-se que PS e PSD são os protagonistas essenciais da velha e inalterável política de direita que há 32 anos têm vindo a praticar em síncrona alternância - política que ambos querem continuar após as eleições de 2009.

No que respeita aos 4 deputados do PS (entre eles Manuel Alegre) que votaram contra o Código do Trabalho, Marcelo considera que «dá jeito ao PS ter alguém que se demarque à esquerda».
Claro que dá jeito ao PS: ó se dá!
Todos nos lembramos de como esta «demarcação à esquerda» (que, no caso do deputado Alegre já conta com 32 anos...) tem dado jeito ao PS...
Todavia é bom não esquecer que, dando jeito ao PS, dá um jeitão à política de direita.

Essa política em relação à qual nem o PS nem o PSD querem ouvir falar de mudança...

Essa política que Marcelo, enquanto comentador independente, vem defender todas as semanas na televisão dita pública - e que é a sua escolha primeira e fundamental.

POEMA

POEMA NUMA ESQUINA DE PARIS


Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HERÓS DE LA RESISTENCE.
VIVE LA FRANCE.


António Gedeão

O SLOGAN

No comício de ontem, em Guimarães, Sócrates repetiu todos os auto-elogios à política que vem fazendo e foi muito aplaudido - certamente por gente que, de alguma forma, beneficiou com essa política ou, que, de alguma forma, espera vir a beneficiar... porque, naquelas paragens, não há aplausos grátis...

Ao que parece, o slogan do PS para as eleições legislativas de 2009, será: «A Força da Mudança» - frase que. segundo consta, serve para valorizar «a mudança» operada pelo actual governo e, simultaneamente, para indicar «a mudança» que vai continuar.

Acontece que «a mudança» concretizada até agora, se traduziu num agravamento brutal das condições de vida de quem trabalha e vive do seu trabalho; em mais desemprego; mais precariedade; salários reais mais baixos; leis piores; mais pobres e mais fome; menos liberdades e direitos; enfim, uma vida cada vez mais sufocante para a imensa maioria dos portugueses.

Assim sendo, permito-me sugerir aos propagandistas do PS/Sócrates que adaptem o seu slogan à realidade.
É simples.
Basta tirar uma cedilha - e aí está um slogan rigorosamente verdadeiro:
«A FORCA DA MUDANÇA»

POEMA

ESTÁTUA DA LIBERDADE


Em
Nova Iorque
há uma gigantesca
estátua da Liberdade à vista.

Lá
dentro da pedra
o coração de Al Capone
extraordinariamente muito pequenino
vende à grande os Estados Unidos.


José Craveirinha
(In «Cela 1»)

CHEIOS DE RAZÃO...

Como podemos constatar diariamente, o Público é um defensor intransigente da democracia. E da liberdade. E dos direitos humanos.
O Público não suporta «regimes autoritários» dirigidos por «ditadores», por «prepotentes» - e se tais «ditadores» são «populistas» e «demagogos», então o órgão central da Sonae entra em parafuso.
Isto porque, como o Público não se cansa de nos dizer, estes «populistas» e «demagogos» são governantes irresponsáveis que, entre outras coisas maléficas e perversas, desviam o dinheiro do petróleo para matar a fome aos esfomeados - e isso é, na democraticíssima visão do Público, ir contra a «ordem natural das coisas», segundo a qual «ricos e pobres, sempre houve e há-de haver».
Daí o tiroteio cerrado e irritado com que o jornal de Belmiro de Azevedo fustiga sistematicamente, entre outros, o Presidente Hugo Chávez.

Desta vez, a irritação do Público radica no facto de o governo venezuelano ter posto a andar do país dois membros de uma tal Human Rights Watch - que é coisa gerada por progenitores familiares dos que geraram o Público.

E afinal, por que é que esses dosi indivíduos - um chileno e um norte-americano - foram antidemocraticamente expulsos da Venezuela?
Apenas porque, em meritória e louvável missão democrática, foram a Caracas fazer uma conferência de imprensa, na qual apresentaram as conclusões de um volumoso relatório produzido pela sua Human Rights etc no qual é feita a análise dos «dez anos de governação de Chávez».
O relatório - diz o Público - é muito crítico» e acusa o Presidente Chávez de tudo e mais alguma coisa em matéria de democracia, de liberdade e de direitos humanos...
Para além disso, o relatório - sempre segundo o Público - trata «com ironia o golpe de Estado de 2002 contra Chávez»...
E para além disso ainda, o relatório dá conselhos a Chávez, indicando-lhe uma série de medidas que deve tomar «para reparar os danos causados» pela sua política - medidas que podem resumir-se assim: Chávez deve deixar de fazer a política que faz e passar a fazer a política que os EUA querem que faça...
Simples, como se vê. E democrático...

Ora, o Governo venezuelano, em vez de, democraticamente, acatar os conselhos dos dois indivíduos - conselhos dados «de viva voz», na capital da Venezuela - expulsou-os antidemocraticamente, despachando-os «no primeiro voo disponível».
E isso, o Público não tolera nem admite... E protesta escandalizado. E denuncia a «intolerância do Presidente da Venezuela»...

O Público está cheio de razão...
E a Human Rights etc também...
E os EUA, esse nem se fala...

Por mim, faço votos para que o Governo venezuelano e o Presidente Chávez continuem a ser, por muitos e muitos anos, alvo dos ataques do Público, da Human Rights etc e dos EUA...

POEMA

CONFIANÇA


O que é bonito neste mundo, e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova...

Miguel Torga

«PELA MÃO DO PS»...

A grande notícia de hoje no DN e no Público - manchete de primeira página em ambos os casos - é a reivindicação de liberdade de voto para os casamentos gay, por parte de uns 20 a 30 deputados do PS.
O outro tema em debate na Assembleia da República - o Código do Trabalho - é abordado pelo DN em página interior e é silenciado pelo Público.
Isto, apesar de o Código do Trabalho ser votado hoje e de a votação dos casamentos gay estar marcada para Outubro.
Isto, apesar de, no primeiro caso estarmos perante uma questão maior, estruturante e, no segundo caso, estarmos perante uma questão epidérmica, digamos assim.
Mas... os média cumprem a sua função: gritar muito sobre o acessório para abafar o essencial.

Todavia, estas notícias suscitam outras, e mais pertinentes, observações.
Registe-se o facto de a posição tomada pelo chefe do grupo parlamentar do PS - Alberto Martins- ao alegar que o PS não pode votar a favor dos casamentos gay porque não tem legitimidade eleitoral para o fazer, isto é: porque não prometeu fazê-lo em programa eleitoral... É o que se chama elevar a hipocrisia e a falsidade aos seus níveis máximos: em primeiro lugar, porque o que diz Alberto Martins não é rigorosamente verdade em relação ao caso dos casamentos gay, dado que a moção de Sócrates, aprovada pelo Congresso do PS em Dezembro de 2007, colocava explicitamente essa questão; em segundo lugar, porque Alberto Martins sabe que o PS jamais se preocupou em cumprir as promessas positivas que faz em campanha eleitoral de caça ao voto, primando, isso sim, pelo seu não cumprimento.

Registe-se, igualmente, o facto, por demais significativo, de esses 20 a 30 deputados do PS não terem sentido necessidade de reivindicar a liberdade de voto no que respeita ao Código do Trabalho - neste caso com toda a legitimidade eleitoral, conhecidas que são as promessas eleitorias feitas pelo PS sobre a matéria.

E essa é a questão principal.
Porque é cumprindo a sua missão de representantes fiéis dos interesses do grande capital que o Governo e os deputados do PS apresentam este Código do Trabalho.

Não tenhamos dúvidas; o Código do Trabalho vai ser aprovado, hoje, na Assembleia da República com os votos dos deputados do PS - e, ao que parece, com as abstenções tácticas do PSD e do CDS, os quais, sabendo que os seus votos não são necessarios para o monstro passar, procedem a um distanciamento eleitoralista em relação a uma lei que sabem saber (e com isso se congratulam) , nesta matéria, a mais retrógada, a mais reaccionária, a mais anti-civilizacional de todas as leis aprovadas em Portugal depois do 25 de Abril.

Como incisivamente acentuou o deputado comunista Francisco Lopes, com este Código do Trabalho, «pela mão do PS escreve-se uma página negra dos direitos e interesses dos trabalhadores e da vida do País».

Pela mão do PS... uma vez mais a juntar a tantas outras em que, ao longo dos últimos 32 anos, o PS se assumiu, de facto, como o partido da contra-revolução de Abril.

O Código do Trabalho vai passar na Assembleia da República, coração da política de direita...
Mas não passará nas ruas - coração da luta dos trabalhadores e das massas populares.
Luta que vai continuar.
Luta que vai intensificar-se.
Luta que vai ampliar-se.

Como veremos no próximo dia 1 de Outubro - e nos que se lhe seguirão.



POEMA

CANÇÃO DO PEDAÇO DE ESPERANÇA


Sou operário da pena.
Outros o são da enxada,
do martelo.

Que cada um crie
com a sua ferramenta um pedaço
de esperança.

Jesus Lopez Pacheco

PORTA-VOZ DA REACÇÃO BOLIVIANA

Desculpem a insistência, mas não resisto a voltar ao enviado do Público à Bolívia.
É que o homem - de seu nome Nuno Amaral (NA) - manipula a verdade, subverte os factos, e é de uma parcialidade escandalosa, assumindo-se frontalmente partidário de um lado contra o outro.

É claro que NA, enquanto cidadão, tem, como qualquer outro, o direito de optar pelo lado que entender. O que não pode é, a coberto da sua qualidade de jornalista, exibir-se como propagandista de um dos lados.
E é isso que ele faz - vigarizando e insultando os leitores.

Bem instalado no meio dos reaccionários, acompanhando-os nas suas arruaças antidemocráticas - e com eles confraternizando - NA assiste, toma notas e propagandeia - como coisa boa - tudo o que eles dizem e fazem. E a imagem que nos dá do outro lado, do lado dos partidários do Governo, é a que os reaccionários lhe fornecem.

Eles dizem: «É urgente que o mundo saiba que estão milhares de camponeses armados a caminho para cá» - e NA, com urgência, obedece.
Eles acrescentam que os camponeses «estão armados pelo Governo e são pagos pelo Presidente Chávez» - e NA despacha a «notícia» como se de um facto comprovado se tratasse.
Pior do que isso: como se, no caso de ser verdade, se tratasse de um atentado à democracia.
Porque em verdade vos digo que lendo o que NA escreve, ninguém dirá que tais afirmações são proferidas por indivíduos de um auto-denominado Comité Cívico que, armado, ocupa a cidade de Santa Cruz (incluindo as instituições do Estado) há mais de três semanas.

Tudo isto estaria bem (salvo seja...) se o enviado do Público, em vez de se dizer jornalista, se apresentasse, por exemplo, como «porta-voz dos opositores do Governo boliviano».
Ou, com mais rigor, como «porta-voz da reacção boliviana» - que é o que ele é.
Assim, disfarçado de jornalista, está a vigarizar-nos.

POEMA

A PABLO NERUDA, COM O CHILE NO CORAÇÃO


Não dormireis, ó malditos da espada,
corvos nocturnos de sangrentas unhas,
tristes covardes das sombras tristes,
violadores de mortos.

Não dormireis.

Seu nobre canto, sua paixão sincera,
sua estatura mais alta do que os cumes,
como cântico livre do seu povo
hão-de afogar-vos um dia.

Não dormireis.

Vinde ver a sua casa assassinada,
a miséria fecal do vosso ódio,
seu imenso coração espezinhdo,
sua pura mão ferida.

Não dormireis.

Não dormireis porque ninguém dorme.
Não dormireis porque a sua luz vos cega.
Não dormireis porque a morte é a vossa
única vitória.

Não dormireis jamais porque estais mortos.


Rafael Alberti

A «NOTÍCIA»

O Público de hoje mostra-nos como se fabrica uma «notícia» segundo os critérios da nova ordem comunicacional.

Lemos, na primeira página do jornal da Sonae:
Título: «Bolívia - Governador da oposição detido por militares»
Sub-título: «A tensão cresce depois da prisão do Governador da província de Pando».

Está dada a essência da «notícia»:
pelo título, deduz-se que os malandros dos militares de Morales prenderam o pobre Governador...
O sub-título diz-nos que a prisão do Governador é a causa do aumento da «tensão»...
(é claro que os confrontos que provocaram 30 mortos e mais de 100 desaparecidos - e que estão na origem da prisão do Governador - nada têm a ver com o aumento da tensão...)

Depois, na página 12, ficamos a saber que o «Comité Cívico pró-Santa Cruz decidiu dar uma última oportunidade a Evo Morales para encetar negociações» - mas, atenção!: só se essas negociações forem «sinceras, verdadeiras, sem traições».
Ou seja: o Comité Cívico - coisa boa, como o nome indica, e gente boa, já que se trata de «empresários, académicos e políticos» - concede, generosamente, uma «última oportunidade» a Morales - mas, compreensívelmente, exige-lhe seriedade e verdade, e não a falsidade a que Morales recorreu até agora...

E para que o leitor não duvide da abertura ao diálogo sério por parte dos opositores, a «notícia» dá a palavra a um «jovem líder» (que, por acaso, o jornalista encontrou a chefiar a ocupação de uma estação de caminho de ferro...». Diz o «jovem líder»: «Morales só tem de dialogar com verdade».
Aí está: a verdade acima de tudo!
E o que é verdade, neste caso concreto? O «jovem líder», com inaudita candura democrática, explica: «Reconhecer a autonomia e dar-nos os 11 por cento dos impostos sobre o petróleo e o gás» - e os ocupantes da estação explicam, sintetizando: «Evo, vai embora»; «Autonomia: sim ou sim»...

Estamos, então, perante uma «notícia» que, aparentando uma isenção a toda a prova, nos dá, no que respeita aos acontecimentos que pretende relatar, a exclusiva versão dos opositores de Evo Morales, valorizando os métodos a que recorrem, fazendo-lhes propaganda...

Lendo a «peça», o leitor distraído concluirá que: a tensão sobe na Bolívia porque Morales mandou prender um democrata; Morales não quer o diálogo e sabota as negociações com golpes baixos; os opositores de Morales são gente de bem, gente cheia de boa vontade e de paciência democrática, gente cheia de civismo, democratas, enfim.

Por seu lado, o leitor prevenido verá o que lá está: uma «peça» de descarado e desavergonhado apoio aos que, antidemocraticamente, tudo fazem para deitar abaixo o legítimo e democrático governo de Evo Morales.

POEMA

FESTA ALEGÓRICA


O bobo do imperador Maximiliano
organizou uma festa alegórica
que o povo e a corte do soberano à frente
saborearam em grandes gargalhadas:
juntou na praça todo o cego pobre,
prendeu a um poste um porco muito gordo,
e anunciou ganhar o dito porco aquele
que à paulada o matasse. Os cegos todos
a varapau se esmocaram uns aos outros,
sem acertar no porco por serem cegos,
mas uns nos outros por humanos serem.
A festa acabou numa sangueira total:
porém havia muito que o imperador
e a corte e o povo não se riam tanto.
O bobo, esse tinha por dever bem pago
o fabricar as piadas para fazer rir.

Jorge de Sena

«O TEMPO E A MEMÓRIA»

«O Tempo e a Memória» é o título genérico das crónias que Mário Soares publica, todas as terças feiras, no DN - crónicas que, com frequência, nos mostram um Soares muito, muito diferente do líder da contra-revolução de Abril financiada pelo capitalismo internacional.
Nunca é tarde para corrigir erros e mudar, dir-se-á. E é verdade.
Só que não me parece que, no caso de Soares, se trate de uma mudança, mas antes de um daqueles exercícios em que ele é mestre e que consiste em dizer, em cada momento, o que mais lhe interessa que seja dito - mesmo que, ontem, tenha dito o contrário, e amanhã volte a fazê-lo.

Sem dúvida que são louváveis as críticas severas de Soares às «intervenções militares» dos EUA na América Latina, «promovendo por toda a região ditaduras militares, derrubando, directa ou indirectamente, as democracias existentes»; sem dúvida que é louvável o alerta de Soares para o recente «toque da sineta dos interesses das grandes multinacionais» que fez Bush virar as suas baterias para a Bolívia e a Venezuela...
Todavia, o que me leva a, pelo menos, desconfiar da sinceridade de tais críticas e alertas, é o facto de Soares não dizer uma palavra sobre a sua atitude face a algumas dessas «intervenções militares» - e a minha memória lembra-me, por exemplo, os aplausos entusiásticos com que Soares festejou a brutal invasão e ocupação de Granada pelos marines norte-americanos...

Enfim, é «o tempo e a memória» de Soares: o tempo em que era um homem de mão do imperialismo norte-americano; e a memória apagada desse tempo...

POEMA

O RICO GASTA O QUE QUER...


O rico gasta o que quer,
o pobre gasta o que tem.
Como se pode achar bem
um ter e outro não ter?
O mundo foi sempre assim?
É uma explicação alvar.
Porque se há-de conservar
o que se tem por ruim?
Alguma vez houve alguém
sem precisão de comer?
O rico gasta o que quer,
o pobre gasta o que tem.

Armindo Rodrigues

REVISÃO DA MATÉRIA DADA

Quando Cavaco tomou posse como primeiro-ministro, fez um discurso no qual, mais palavra menos palavra, disse três coisas:
1 - O país está num estado lastimável; 2 - A culpa é do Governo anterior; 3 - É preciso que os portugueses apertem os cintos...
Assim foi: a imensa maioria dos portugueses apertou os cintos - e ficou mais pobre (e a imensa minoria alargou os cintos - e ficou mais rica).

Tempos depois, Cavaco anunciou o «novo Portugal», a «abundância», o «oásis», o «pelotão da frente»... Portugal estava salvo!
Tempos depois, quando as eleições se aproximavam, Cavaco fugiu para Boliqueime onde entrou em estágio presidencial.

E veio Guterres - o qual, no seu discruso de posse, disse, mais palavra menos palavra, três coisas:
1 - O país está num estado lastimável;
2 - A culpa é do Governo anterior;
3 - É preciso que os portugueses apertem os cintos.
Depois, prosseguiu a política de Cavaco, acrescentando-lhe, formalmente, alguns toques pessoais: a «solidariedade», o padre Melícias, o dr. Pina Moura e o ministro Vitorino -e anunciou o «fim da crise»... Portugal entrou em estado de graça!
Tempos depois, em vésperas de eleições, Guterres fugiu...

Sucedeu-lhe Barroso - o qual, no seu discurso de posse, disse, mais palavra menos palavra, três coisas:
1 - O país está num estado lastimável;
2 - A culpa é do governo anterior;
3 - É preciso que os portugueses apertem os cintos.
E prosseguiu a política de Cavaco e de Guterres, acrescentando-lhe, formalmente, aquele seu jeito de discursar em que os gestos estão em dissonância com as palavras - e logo anunciou, ora toma!, «a retoma». Portugal estava outra vez salvo!
Tempos depois, Barroso fugiu - para a Europa...

E sucedeu-lhe Sócrates - o qual, no seu discurso de posse, disse, mais palavra menos palavra, três coisas:
1 - O país está num estado lastimável;
2 - A culpa é do governo anterior;
3 - É preciso que os portugueses apertem os cintos.
E prosseguiu a política de Cavaco, de Guterres e de Barroso, acrescentando-lhe, formalmente, aqueles seus ademanes e requebros de gestos e de voz - e logo anunciou, tal como anunciaram Cavaco, Guterres e Barroso, e mais palavra menos palavra, que os portugueses vivem no melhor dos mundos.

Quer tudo isto dizer que o destino de Sócrates está irreversivelmente traçado: um dia, mais cedo ou mais tarde, ele fará as malas e fugirá.
E a questão mais importante não é a de saber quando chegará esse dia: o que importa é que ele, quando fugir, leve consigo, e de vez, esta política que há 32 anos flagela Portugal e os portugueses.

É essa a grande tarefa que temos pela frente.
Tarefa difícil, dificílima - e só alcançável através de forte intensificação e ampliação da luta de massas.

Vamos a isso, então. E para já, preparemos-nos para fazer do próxim 1 de Outubro, uma muito grande jornada de luta.

POEMA

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA INSCRIÇÃO A LÁPIS EM CAXIAS


«Encontramo-nos
nesta sala
setenta e dois camponeses
do Couço
e de Montemor.
Sempre
sempre nos demos
como irmãos.

Vocês devem continuar
a fazer o mesmo»

Mário Castrim

PREPARAR O TERRENO

No Editorial do Público de hoje, Nuno Pacheco analisa a «crise da Bolívia».
Trata-se de uma análise-tipo dos propagandistas do sistema dominante, os quais, sem ponta de vergonha e recorrendo ao desbragado vale-tudo em matéria argumentativa, insultam a inteligência de quem os lê.

Diz ele que «a Bolívia encontra-se a braços com uma crise gravíssima, que ameaça alastrar não apenas à América Latina (...) mas também ao mundo».
Segundo Pacheco, as razões da crise «são conhecidas».
E quais são essas razões conhecidas?
Pacheco explica: Evo Morales, mal acabou de ser eleito Presidente da Bolívia, «nacionalizou as indústrias de gás e do petróleo» e com isso «acendeu o rastilho das autonomias».
Porquê?
Porque - continua a explicar - «Evo Morales canalizou as verbas do petróleo e do gás natural para um programa nacional de assistência a idosos», não atendendo às exigências dos que, nas respectivas regiões, consideravam que essas verbas eram deles e só deles e não do País.

Sempre explicando, Pacheco denuncia a manobra de Evo Morales ao «convocar um referendo para pretensamente reforçar a sua posição» - referendo que, reconhece Pacheco, lhe deu «o que queria(67 por cento dos votos)», mas com o desacordo... dos restantes 33%... - o que, explica ainda Pacheco, «cavou ainda mais o fosso entre as duas Bolívias»...
Daí, conclui Pacheco, «os graves confrontos entre civis (nos últimos dias), felizmente ainda sem intervenção do exército» - intervenção essa que não é de excluir «já que os líderes das províncias rebeldes garantem que terão autonomia pelo diálogo ou pelas armas» - o que, traduzido (por mim, não pelo Pacheco) quer dizer que, para os tais «líderes», «diálogo» significa o Presidente fazer o que eles querem...

Temos então que, para o editorialista do Público, as culpas da crise actual são, todas, de Evo Morales; da sua inaceitável decisão de, com dinheiro do gás e do petróleo, ter ido matar a fome aos famélicos, e de - insolência das insolências! - ter feito um referendo, no qual, felizmente, obteve o apoio não de todos, mas de apenas 67 por cento dos bolivianos...

Assim sendo, remata Pacheco, «se Evo Morales não aceitar o conselho que, neste momento, muitos partilham a nível internacional»...;
ou seja: se Evo Morales «insistir na cegueira da sua suicida gestão política interna»;
isto é: se Evo Morales não perceber que «o circo de uma pretensa "revolta libertadora" a sul é de todo indesejável, por todos e para todos»;
ou, dito de forma mais clara: se Evo Morales não entrar nos eixos definidos pelo imperialismo norte-americano... então, ameaça Pacheco, «há razões mais do que suficientes para temer que a situação se descontrole»...
Pacheco não explicou que expressões esse «descontrole» virá a assumir.
Contudo, atira para o ar uma ideia geral que explica tudo: «acabou o tempo dos salvadores socialistas pretensamente iluminados»...


Hoje mesmo, em vários países do mundo, outros pachecos escreveram, certamente, outros iguais editoriais - todos concluindo que a responsabilidade pelo que vier a acontecer na Bolívia é, toda ela, de um indivíduo «pretensamente iluminado», mas cego: porque não vê que uma «pretensa revolta libertadora», apoiada em «pretensos» apoios referendários, é «indesejável por todos e para todos»...

Chama-se a isto, preparar o terreno para a aceitação - como coisa necessária, inevitável, justa e boa - de tudo o que os patrões dos pachecos vierem a fazer.

POEMA

PRESS AMERICANA


Vejam! Ali! Ali surgiu um rato!

Será possível que os seus olhos,
cinicamente luminosos,
transportem duas bombas atómicas?

Temos de vigiar; impedir o desacato.
O inimigo atinge as nossas portas.

São portadores de vírus; são leprosos;
como da química nascidos proliferam
em traiçoeiras retortas;
em cada guerra aumentam, extravasam
da gafaria e adulteram
das nossas ambições os melhores veios.

(O roedor é uma infiltração. Sabemos
que o inimigo não escolhe meios
- ou melhor, sabemos que os escolhe.)

Concedei inspiração e orçamento
aos nossos sábios. Que cada um olhe
somente o bem comum e se dedique
a encontrar a novel fórmula, o eficaz
raticida; de preferência em drageias
de aspecto fino e venda garantida.

Olhem bem! Ali! Atrás daquela moita
não é outro que se acoita?

Egito Gonçalves

SOLIDARIEDADE

Tem sido assim, sempre, ao longo da história: em todos os países do continente americano onde os povos optaram, em actos eleitorais e (ou) através de lutas de libertação, pela independência, pela soberania, pela democracia, pela liberdade, pelo direito a decidirem dos seus destinos - ocorreram intervenções do imperialismo norte-americano.

Na esmagadora maioria dos casos, essas intervenções traduziram-se na destruição de processos democráticos em curso nesses países e na subsequente implantação, à custa de milhares de mortos, de governos pseudo-democráticos, ditatoriais ou fascistas - todos fiéis representantes dos interesses dos EUA.
Exemplos: Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Granada, República Dominicana, Cuba, Nicarágua, El Salvador, Guatemala, México... - cito de memória e é possível que faltem alguns...

Os métodos têm sido, no essencial, os mesmos: a desestabilização do país, através da acção de grupos organizados e financiados pela CIA e a realização de tantos actos eleitorais quantos os necessários para impor um governo favorável aos EUA; ou, se isso não bastar, a organização do respectivo golpe de estado; ou, se mesmo assim não tiverem conseguido alcançar os seus objectivos, a invasão pura e simples.
E sempre, sempre, em nome da democracia, da liberdade e dos direitos humanos...

Vem tudo isto a propósito do que se está a passar na Bolívia - onde se assiste a um processo em tudo semelhante aos que, ao longo dos anos, têm ocorrido em todos os outros países latino-americanos; processo no qual é bem visível a marca do imperialismo norte-americano - e que não deixa margem para dúvidas sobre os enormes e graves perigos que pesam sobre a jovem democracia boliviana.

É certo que muita coisa mudou, nos últimos anos, naquela região do mundo.
É certo que a vitoriosa resistência de Cuba, mais os processos democráticos em curso designadamente na Venezuela, no Equador, na Nicarágua, no Paraguai, introduzem novos, significativos e promissores elementos no que respeita às possibilidades de vencer a ofensiva reaccionária na Bolívia.
É certo que a posição solidária já assumida pela Venezuela bolivariana é um sinal altamente positivo.
Mas, mesmo assim - insisto - os perigos são muitos.


Daí que, a meu ver, a solidariedade com o povo boliviano e com o Governo do Presidente Evo Morales, se coloque, na situação actual, como questão maior para todos os democratas.

POEMA

NÓS


Nós,
os que temos agora vinte e trinta anos
e nos arrasta a inquietação de um mundo mais justo,
não vivemos nunca a liberdade.

Temo-nos andado a chatear, escondidos
ao fundo deste vexado país, e muita vez
nos espantámos da indiferença dos irmãos,
tornados insensíveis e mudos pelo medo.

Algumas vezes tentámos levantar voo
mas topámos com força contra velhas paredes de ódio.
Conhecemos o fel da tranca, a amargura da impotencia,
e os mais ousados conheceram também a sufocação de dias longos
e cinzentos à sombra de geladas grades.

Proclamaremos, porém, que enquanto um fio de lucidez ponha a fé
acima da nossa vontade, não temeremos o veneno
da serpe, porque nos sabemos possuidores da razão.
Proclamaremos, também, que cada dia seremos mais
os que querem, com exigência, um mundo mais justo,
um mundo mais nosso, onde possamos saber pela primeira vez
o que é, e como se vive, a liberdade.

Àlvar Valls

COISAS DA DEMOCRACIA MODERNA...

Curiosa notícia, esta: primeiro, diz-nos que a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos - a tal, exactamente... - informou que elementos seus
«estiveram na Festa do Avante mas não fizeram qualquer acção de fiscalização».
Lida a informação, fui levado a pensar que os representantes da Entidade estiveram na Festa como quaisquer outros visitantes - assistindo aos espectáculos, comendo um petisco, apreciando as exposições, vendo um filme ou assistindo a uma peça de teatro, enfim, fruindo a Festa enquanto espaço único de cultura e convívio fraterno - e não como polícias da Entidade: fiscalizando e fazendo relatório sobre quantos visitantes não cumpriram a «lei» e pagaram a bica, ou a cerveja, ou a garrafa de água, com uma moeda e não com os obrigatórios cheque ou cartão multibanco...

Contudo, umas linhas mais abaixo, a dita notícia informa que a dita Entidade
«só à posteriori comunicará o resultado desta fiscalização»...
Ó diabo!...
Assim sendo, ficamos a saber que não houve fiscalização, mas que um dia destes seremos informados sobre... o resultado da fiscalização.
Ó diabo!...

Parece anedota, mas não é. Como não é anedota a exigência do cheque ou do cartão multibanco para pagar a bica - e muito menos o é o critério da Entidade ao considerar que o lucro da Festa é a soma de todas as receitas sem descontar as despesas...
É que tudo isto está em conformidade com os objectivos da famigerada «lei» e da razão de existir da igualmente famigerada Entidade:
a «lei» foi feita exclusivamente contra o PCP e a Festa do Avante; a Entidade existe, é paga e funciona exclusivamente contra o PCP e a Festa do Avante.
O que é bem revelador de como, quer a «lei» quer a Entidade, são corpos estranhos à Democracia.

Entretanto, e no que respeita ao financiamento dos partidos, registe-se a recente criação, pelo PS, de uma coisa chamada Fundação Respública - que, segundo nos é dito, vem substituir as extintas fundações José Fontana e Antero de Quental, também elas propriedade do PS.
Recorde-se que as duas fundações agora extintas foram criadas em 1977 com o objectivo - que cumpriram plenamente - de lavar os milhões de contos com que os EUA, a Alemanha, a França, a Inglaterra, etc, financiaram a contra-revolução de Abril encabeçada pelo PS/Mário Soares.

É claro que a Fundação Respública, criada para financiar o PS, pode agir à vontade e sem qualquer Entidade a fiscalizar a(s) proveniência(s) dos seus fundos.
Proveniência(s) fáceis de imaginar, se olharmos para a composição da Direcção da Fundação...


É esta a democracia moderna em que vivemos... até conquistarmos a outra: a democracia, apenas.